Há alguns anos atrás participei de um site literário onde publiquei alguns poemas, alguns contos e crônicas. Depois de um mês, interrompi a participação por um tempo e, quando tentei voltar, percebi que tinha esquecido a senha de acesso. Como sou meio volúvel e já havia arrumado outros afazeres, acabei "deixando pra lá" e esqueci o site e meus escritos.
Hoje, por uma coincidência, re-encontrei o site e, como visitante, acessei os meus escritos para perceber que a maioria deles não têm valor literário algum, de fato. Mas uma publicação me pareceu merecer a sua reprodução aqui, devido ao tema que continua polêmico e sem grandes soluções. Eis o texto:
AlcidesA imagem da fome, da miséria está aí, todo dia, em cada esquina, em cada jornal, em cada olhar de pesar e de medo dos amigos. Todo dia, toda semana, todo mês... entra ano, sai ano, e a miséria é a mesma, só muda de rosto e de lugar, se e quando mudam. A consternaçãotambém é a mesma... entra ano, sai ano, sempre se diz e ouve-se dizer "é uma vergonha, é uma pena", e nem a pena nem a vergonha se atenuam, só mudam de boca e ouvidos, mudam de idade e cidade, mas continuam as mesmas.
Acho que de todos os medos, o pior é o de sentirmos impotentes. Incapazes de mudar o que parece imutavelmente terrível na sua profundidade e dimensão. E aí? Se não é possível lutar, o melhor é se adaptar? Seria essa a resposta, consciente ou não, das pessoas? (Já ouviram um ditado horroroso que diz: "se o estupro é inevitável, relaxa e goza" ?) O que observo é que, de tanta enxurrada de imagens da miséria, nós ficamos um tanto calejados, insensíveis, e quando se torna inevitável encará-la de frente, muitas vezes a reação é de violência... verbal, ou até física às vezes, na tentativa de se livrar da evidência o mais rápido possível.
Há muitos, muitos anos atrás, eu estudava à noite numa escola e ali perto havia um lanchonete que se tornou o nosso "point" após a aula. Dez e meia da noite e lá estávamos, colegas e professores, numa roda animada de conversa de "alto nível" regada a chopp, batatinha frita, lanches. Havia um bando de crianças por ali... eram conhecidas como exímios batedores de carteiras, embora nós não soubéssemos disso. Alguns dias depois que nosso happy-hour se tornara um hábito, essas crianças resolveram se aproximar, pedindo dinheiro. Imediatamente, o dono do lanchonete chegou, expulsou-os dali a altos brados, e pediu-nos desculpas... Por que ele deveria pedir desculpas? "Ah, esses moleques são o terror daqui, uma praga pra nós, comerciantes. Eles roubam, assaltam, cheiram cola... um horror! Já chamamos polícia, FEBEM, mas eles fogem, e aparecem dias depois... não têm jeito"
Dito e feito, na noite seguinte, elas estavam lá outra vez, esmolando. Uma delas me puxou pela manga e disse: "tiaaa, me dá um trocado? tô com fome". Eu (que ingênua!) me virei e olhei nos seus olhos. "Tá com fome? posso te pagar um lanche, então, porque dinheiro não dou". O moleque abriu um enorme sorriso e me agradeceu: "tá, tia, brigado!" O dono do lugar já vinha com vassoura na mão pronto a bater no garoto e a expulsá-lo como de sempre, mas diante do nosso protesto voltou atrás e o garoto ficou. Só ele, os outros já haviam fugido dali. "Vê como se comporta, heim, moleque, nada de perturbar os fregueses!" o dono advertiu, mas se afastou. O garoto ficou ali, de pé, meio escondido atrás de mim, a sua protetora! O lanche pedido chegou, um professor, então, disse para o garoto puxar um banquinho para comer. Nós vimos, então, no rosto encimando um corpo franzino, coberto de roupa encardida e cabelo pastoso, um par de olhos brilhantes de alegria e orgulho por sentar-se à mesa de "gente importante"... Ali estava, emergindo de um rótulo, um pedaço de gente, um ser humano, uma criança com rosto, nome, sentimentos e memória.
"Qual o seu nome?"
"Alcides"
"Quantos anos você tem, Alcides?"
"Oito, tia"
"E o que faz aqui, tão tarde da noite, não tem casa?"
"Tenho, eu volto pra lá no último ônibus, ele passa daqui a pouco"
"Tem pai? mãe? não vai à escola?"
"Meu pai não mora com a gente, graças a deus, moro com minha mãe e meus irmãos"
"Por que fica na rua até tão tarde, então?"
"Tia... tá vendo aquele moleque alí, perto do poste? toma cuidado com ele, tá, tia, ele é perigoso..."
"Eu trabalho pra ele... ele já teve na febem, já espetou gente..."
"E se eu não trabalho, ele pode me machucar..."
"Depois, é sempre bom levar uns troquinhos pra casa também... às vezes eu levo leite e pão pros meus irmãos"
Foi assim que conheci Alcides. Ele passou a ser uma espécie de meu protegido, vinha todas as noites e ganhava um lanche, depois passou a ganhar também uns afagos, e por fim ganhou também colo. Ele parecia que jamais havia sentado no colo de alguém, agarrava a minha mão, levava-a ao seu rosto, queria que eu o apertasse, que o penteasse... Meus colegas me toleravam, achavam que eu era louca por permitir um fedelho abusar de mim. Alguns achavam que era ótimo que eu usasse o garoto para acalmar as minhas culpas sociais, mas me advertiam que, no final, eu nada fazia para melhorar o mundo, e que possivelmente eu fazia mais mal ao moleque do que bem.
A história de Alcides é a mesma de todas as crianças, eu acho. Filho de lar desfeito, vítima da miséria econômica e humana, crescera nas ruas e a troco de supostas amizades iniciou a sua carreira de batedor de carteira. E era um dos melhores no ofício, segundo ele. "Mas, olha, tia, eu sei o que não devo fazer, tá? nunca roubei velhos, nem gente pobre, nunca cheirei cola, nem fumei nada, eu sei que isso derrete os miolos, e eu não quero... um dia eu quero ser bombeiro... Aí, arrumo um bom barraco pra minha mãe e pros meus irmãos..."
Uns dois meses depois, o bando de Alcides subitamente desapareceu. Na correria entre provas e trabalhos, a turma do happy-hour havia diminuído de número e freqüência. Perguntei ao dono do lanchonete pelo bando, ao que ele respondeu que uma batida policial durante o dia havia dispersado o bando. "Graças a deus! moça, eu não queria te dizer, mas aqueles moleques são gente ruim! tem até um assassino no meio! sorte sua que ninguém te incomodou até agora, mas toma cuidado com essa gente!"
Algumas semanas depois, o bando reapareceu, sem o Alcides. Contrariando o conselho dado, resolvi abordar um deles que às vezes ganhava um lanche dos meus colegas, porque o meu protegido dizia que aquele moleque era boa gente. O amigo me contou que Alcides fora encaminhado ao FEBEM por determinação judicial, já que a mãe dele havia desaparecido e a avó se recusava ficar com o neto. Eu ofereci a ele o lanche que seria do Alcides. Ele agradeceu, comeu... e foi a última vez que vi esse bando de crianças.
Nunca mais vi ou tive notícias do Alcides. Onde estará ele agora?... Se vivo, ele teria hoje seus 23-24 anos, idade bastante para ser bombeiro. Tomara que meus colegas tivessem errado, que ele tenha conseguido se sair bem, apesar da impotência desta tia que não pôde ajudá-lo na sua infância.
(Publicado incialmente em 12/05/2006)